Reunião de 14/09/2017

“Eu ainda sinto o gládio da execução entrando e rompendo a carne, nervos e veias do meu ombro. Ainda sinto a dor. Sinto e vejo o sangue se esvair. Morri feito um porco. E vivi como um também, de certa forma. Torturei, matei e me empanturrei em riquezas vis de um Império também vil.

Não cheguei a me arrepender do que fiz em vida. Cumpri ordens e também as dei, me integrei onde e como precisava. Vivi como os meus viviam. Quando a execução chegou, justa ou injusta, não sei, estava consciente.

Senti cada fibra da minha carne ser cortada e cada gota do meu sangue ser minado. O vi, aos borbotões, molhando minhas belas vestes de riqueza e ostentação e, depois, encharcando a terra dos belos jardins de minha bela casa. E soube que era a hora de entregar a moeda a Caronte e confrontar o reino de Hades.

Para minha surpresa, isso não aconteceu bem assim. Não houve moeda, nem barqueiro, nem rio… mas, havia inferno. Isso sim! Vaguei tentando entender. Sem forças com tanto sangramento. Com dor de carne cortada. Mas, com o orgulho de ter vivido como vivi, de ter cumprido meus deveres e alcançado o sucesso que sempre almejei e a que me dediquei com afinco e sem pudores.

Vi dor, choro, angústia à minha volta, sem entender de onde vinha aquilo. Senti fome, frio, sede, cansaço e dor. Vi meu longo manto e minha túnica, permanentemente encharcados do meu próprio sangue, se desmancharem, se rasgarem, se puírem e esgarçarem até ficarem como algo menos que uma névoa, um resto daquele sinal de riqueza e poder que eles representaram um dia, nos tempos de glória.

Ainda sinto tudo isso. Ainda posso ver a sombra do cabo do gládio cravado em meu ombro. E creio que verei sempre.

Vivi feito um rei, conspirei como uma víbora, agi como uma hiena sedenta de sangue e morri como um porco.

Não me arrependo do meu trabalho e da minha vida. Era o que havia para ser feito. Era o que era. Mas, não entendo onde estão os deuses ou os demônios que eu deveria confrontar na hora da morte. Não entendo essa longa estrada, úmida de meu próprio sangue, que precisa ser trilhada dia a dia, noite a noite.

Às vezes, eu até desisto de entender e de caminhar. Aí, me vêm luzes. Luzes estranhas que me incitam, apesar da dor e do cansaço, a seguir, a andar mais e mais nessas trilhas que mais parecem labirintos, como aqueles que construí para atormentar meus inimigos. Labirintos de tramas de ódio e intrigas. E labirintos de tortura e dor.

Ah eu costumava gostar de vê-los sentir dor, vê-los em prantos e apelos. Vê-los sofrer e sangrar até a última gota.

Na hora da minha execução, não dei esse prazer ao meu carrasco. E me orgulhei disso. Ele não me viu lamentar minha sorte. E eu não tinha mesmo de me lamentar. Afinal, eu fui pego em tramas semelhantes às que eu mesmo armei tantas vezes. Esse era o jogo. O meu jogo. E eu iria até o fim. E eu fui até o fim. E eu fui derrotado em minha própria arena.

Sangrei como o animal que sempre fui, em meu próprio jardim, em minha própria casa. E enfrentei a longa estrada que se abriu diante de mim, bem diferente do rio que pretendia atravessar com a ajuda do barqueiro comprado com moedas de ouro que acumulei a vida toda, e bem diferente da vida de intrigas, dores, sangue e glória que vivi.”

FRATERNALMENTE


* Na mitologia grega, Caronte (em grego: Χάρων, transl.: Chárōn) é o barqueiro do Hades que carrega as almas dos recém-mortos sobre as águas do rio Estige e Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos.